Um épico para o terceiro milênio

por Henrique Rodrigues


        Uma vez que Baudelaire tenha afirmado que o poeta é o herói da modernidade por sobreviver num mundo em que o lirismo se tornou desnecessário, a discussão sobre a (in)utilidade da poesia - e do fazer poético - se tornou uma constante nos estudos literários. Quem é esse que ousa provocar o inusitado nessa realidade de palavras e pessoas cimentadas? Se tal arte tem se revelado dispensável para a existência contemporânea, por que se insiste nela? É possível ser poeta sem se submeter aos aplausos pequeno-burgueses nos eventos em bares e centros culturais, muitas vezes realizados pelo modismo de um suposto renascimento da poesia?
         Muitas dessas respostas podem ser encontradas em "Guesas de Eros" (Maricá/RJ: Blocos, 2000. 680 págs.), do carioca Paulo Bauler. Grandioso em qualidade e extensão, o volume é dividido em cinco partes, que isoladamente já dariam excelentes livros: "O caminho de São Eros", "Guesas de Eros", Bocagianas brasileiras", "Beautiful Maíra" e "Delírio Antropofágico". Este último, como afirmou Gilberto Mendonça Teles na orelha, pode ser visto como "um dos mais ecléticos manifestos literários para o novo milênio", uma vez que se trata não de poemas, e sim de fragmentos em prosa, à melhor maneira de Oswald de Andrade - como está subentendido no título - impregnados de humor instigante e fino.
         Uma leitura ingênua e desatenta pode encontrar nos poemas apenas traços descritivos de pornografia. Na verdade, o que é oferecido em "Guesas de Eros" é a relação do amor carnal humano com a elevação divina: "Feliz daquele que cumpre o que Deus deu (...)/ Feliz daquele que se aceita o próprio deus// Saber do amor as réguas e os compassos/ E caminhar de mão dadas/ assim na terra como nos céus." Porque se é pelo amor que o homem se dignifica, que seja pela sua manifestação real, e não por divagações idealizadas que se encerram nas palavras. As quatro primeiras partes do livro, cuja temática forma uma unidade seqüencial do indescritível átimo amoroso, sugerem uma possibilidade de se atingir uma sublimação (humana e, ipso facto, divina) através da consciência plena do outro. Desponta, assim, a religiosidade no sentido original do termo, que significava a "re-união" de elementos separados, mas que outrora formavam um ser uno.
         Apesar das quase setecentas páginas, que inicialmente podem assustar o leitor, "Guesas de Eros" tem uma linguagem absolutamente fácil de ser entendida, e por isso a leitura é bastante agradável. Isso não significa que seja banal, mas inteligível, inclusive porque trata de um tema universalmente reconhecível. Há, porém, uma série de referências históricas, religiosas e literárias que soam como um deleite para o leitor mais erudito. Embora estejam em forma livre, os poemas possuem uma musicalidade pulsante, num ritmo que por si só já é um convite a permanecer com o livro aberto.
        Paulo Bauler não se enquadra na categoria dos poetas de câmeras e cambalhotas que proliferam nos saraus da Zona Sul do Rio. Sabe que a poesia nasce do silêncio e no silêncio deve ser absorvida. "Guesas de Eros" é o seu presente para os ainda (e sempre) leitores de poesia, num texto que transcende com magnificência do material ao etéreo, fazendo da religião das palavras a brasa alentadora dos estímulos.